março 25, 2005

Memórias

Há um poema de Guerra Junqueiro que me é muito querido.
Não tenho noção de quando foi a primeira vez que o ouvi, porque a minha mãe cantava-mo para adormecer, quando eu era bebé.
Nunca mais ouvi falar dele até o meu filho nascer e ela recomeçar a cantar, com aquela voz doce de uma mãe que embala um filho e fazer despertar em mim recordações inconscientes.
Aprendi-o e comecei a cantá-lo também aos meus filhos.
Tenho-o cantado como forma de acalmar bebés e crianças pequeninas que tenho que tratar e começam a chorar por serem tocados por alguém que não conhecem.
Resulta quase sempre. Páram, de olhos muito abertos para mim, enquanto eu , baixinho, lá vou cantarolando os versos e sorrindo para eles enquanto trabalho.

Há uns anos, estava eu no Portugal dos Pequeninos em Coimbra, deparei com este mesmo poema na parede de uma casa. Sorrir com cumplicidade para uma parede é uma coisa perfeitamente idiota, mas foi o que fiz. E segui, com um filho em cada mão, cantando.

Não sei porquê ( ou até sei mas não me apetece expô-lo aqui), hoje apeteceu-me partilhar este poema e o que sinto quando o canto. Tenho pena de não conseguir pôr a música, mas também não seria de todo agradável ouvirem-me a cantar.
É assim:

A Moleirinha

Pela estrada plana, toque, toque, toque
Guia o jumentinho uma velhinha errante
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toque, toque, toque
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
O jerico ruço duma linda cor;
Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o, toque, toque, moleirinha branca
Com o galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toque, toque, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

Toque, toque, toque, lindo burriquito,
Para as minhas filhas quem mo dera a mim!
Nada mais gracioso, nada mais bonito!
Quando a virgem pura foi para o Egipto,
Com certeza ia num burrico assim.

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toque, toque, toque, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
Pra vestir os netos, pra acender o lume...

Toque, toque, toque, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, prà fazer cristã!

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,
Toda, toda branca, vai numa frescata...
Foi enfarinhada, sorridente amiga,
Pela mó da azenha com farinha triga,
Pelos anjos loiros com luar de prata!

Toque, toque, como o burriquito avança!
Que prazer d'outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toque, toque, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d'astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d'oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!

Guerra Junqueiro

Canta para mim, mãe...

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